Você precisa de profissionais de RI, embora ainda não saiba disso
Eugenio Diniz[1]
Obs.: Essa matéria foi escrita especialmente para nossa parceria com o site What’s Rel?, e foi originalmente publicada em seu blog em 26 de setembro de 2019.
Você tem dúvidas sobre o que digo no título? Deixe-me, então, contar-lhe dois casos, e depois explico.
Caso 1
No primeiro semestre de 2011, conversando com um então aluno do Curso de Relações Internacionais, notei que ele parecia desanimado. Perguntei-lhe se estava tudo bem, e ele contou-me que algo se passara na empresa em que trabalhava — um escritório, em Belo Horizonte, de uma empresa cujas atividades relacionavam-se, ainda que indiretamente, ao petróleo.
Segundo ele, pessoas da sede da empresa vieram apresentar um plano de investimentos de porte significativo, que estava em elaboração já havia algum tempo. Após a exposição, aquele rapaz perguntou aos expositores se estes estavam acompanhando o que vinha ocorrendo no Egito — era a época da “Primavera Árabe”, e o outrora presidente Hosni Mubarak deixara o poder. Quando um deles respondeu que sim, meu hoje ex-aluno observou-lhes que, caso houvesse a interrupção do trânsito no Canal de Suez — à época, uma possibilidade bastante real —, as chances seriam grandes de que aqueles recursos a serem investidos provavelmente nunca seriam recuperados. Ao que parece, essa possibilidade e suas consequências ou não foram percebidas pelos planejadores e decisores, ou, se percebida, não se percebeu sua relação com o investimento a fazer. Segundo meu ex-aluno, daí vinha o seu desânimo.
Na ocasião, pensei comigo: entendo perfeitamente, pois qualquer profissional de Relações Internacionais pensaria nisso imediatamente; na verdade, qualquer aluna ou aluno dos períodos mais avançados do nosso curso de graduação em RI teria isso em mente – como, aliás, foi o caso naquela ocasião.
Caso 2
Alguns anos atrás, recebi uma mensagem de uma ex-aluna do Curso de Relações Internacionais. Segundo ela, ela fora contratada, alguns meses antes, por uma empresa que, havia então vários anos, vinha tentando acertar um contrato com uma empresa alemã. Ela passou a integrar a equipe responsável por essa negociação. Diante desse desafio, ela retomou o material bibliográfico de uma disciplina sobre processos de negociação em política internacional, que ela cursara comigo durante a graduação. Retomando as leituras, ela pôde sugerir algumas iniciativas à equipe. Segundo ela, as negociações começaram a andar, de tal modo que, naquele dia, fora fechado o acordo, e seu chefe lhe dissera então que contratá-la fora a melhor decisão profissional que ele já tomara. Ela estava tão feliz que quis me escrever para agradecer. Agradeci-lhe a gentileza, compartilhei de sua alegria, mas, evidentemente, o mérito fora todo dela. Mas, também nessa ocasião, pensei cá comigo: quem analisa, numa disciplina de negociação, a Crise dos Mísseis em Cuba (1962), tem muito a dizer numa situação em que o que está em jogo é menos grave — por mais difícil que seja a negociação.
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Já vivi muitas outras situações semelhantes, ao longo dos meus quase vinte anos de docência em Relações Internacionais. Mas acho que os dois episódios acima são bastante ilustrativos de uma realidade curiosa no Brasil: quanto mais as atividades produtivas e comerciais brasileiras se internacionalizam — e essa internacionalização é inevitável —, maior a necessidade de contar com profissionais de Relações Internacionais. Dito de outra forma: as empresas brasileiras precisam urgentemente de profissionais de Relações Internacionais, mas, em larga medida, ainda não sabem disso.
Os dois exemplos acima mostram muito bem três aspectos que distinguem tais profissionais.
O primeiro é a quase imediata conexão que fazem entre questões econômicas e políticas, e particularmente dos pontos de vista estratégico (às vezes dito também “geopolítico”); da atenção a questões éticas, jurídicas, ou ainda de padrões de comportamento em gestação no âmbito de organizações internacionais; ou ainda da sensibilidade a processos políticos em curso em outros países, mas que podem espalhar-se regionalmente ou mesmo globalmente. Muitas vezes, dirigentes de empresas têm consciência da importância de tais pontos, mas raramente a empresa dispõe de capacidade instalada para monitorar sistematicamente tais tipos de desdobramentos, cujos impactos podem ser significativos nas suas atividades, mas que, se não acompanhados regularmente, só serão percebidos quando for tarde demais. Normalmente, os cursos de graduação em RI tendem exatamente a enfatizar essa conexão entre atividade econômica e processos políticos.
O segundo aspecto é um pouco mais sutil. Disciplinas voltadas para o estudo de negociações não são exclusivas de cursos de Relações Internacionais. Entretanto, essas disciplinas tendem a basear-se em literatura e casos das áreas de vendas, dos acordos judiciais e, às vezes, negociações trabalhistas. Quando as pessoas ou equipes responsáveis pelas negociações estão sujeitas a um mesmo contexto político, a um mesmo ordenamento jurídico, e compartilham um determinado universo de valores e padrões de comportamento aceitáveis e inaceitáveis, aquela literatura e aqueles casos podem ser muito úteis. Porém, basta que mude um único daqueles fatores — unzinho só — para que a negociação se torne muito, muito mais complexa. As negociações estudadas nos cursos de Relações Internacionais tendem a ser as mais complexas possíveis: geralmente envolvem vários atores diferentes (p. ex., Estados e outros Estados; Estados e empresas; Estados e organizações não-governamentais; governos e suas populações…), com ambientes políticos diferentes (ditaduras e democracias, regimes parlamentares e presidenciais, sistemas multipartidários, bipartidários ou de partido único…), com ordenamentos jurídicos muito distintos, e com conjuntos de valores e padrões de comportamento extraordinariamente distintos, às vezes até mesmo internamente (como no caso de Estados multiétnicos). É claro que cada situação terá suas particularidades; mas quem acostumou-se a estudar as negociações entre Israel e Egito, mediadas pelo Presidente dos Estados Unidos, em 1978; ou a questão de Chipre, que se arrasta há mais ou menos 60 anos, está muito mais atento a essas variações.
Esses dois aspectos mencionados acima, que costumam ser enfatizados e sistematizados nos cursos de graduação em Relações Internacionais, entretanto, revelam um terceiro aspecto, que, a meu ver, é o mais importante e o mais sutil deles, e de certo modo precede o ingresso nos cursos, e talvez até molde a opção por estes: quem escolhe estudar Relações Internacionais já pensa grande. Seu horizonte é, quase que por definição, global. É gente que já tem aquilo que foi identificado por Carlos Drummond de Andrade: o “sentimento do mundo”. Naturalmente, isso não é exclusivo de quem estuda RI; mas, por outro lado, é inerente a elas e eles.
Assim, se você ainda não sabe, é bom prestar atenção: sua empresa precisa de gente que entenda e acompanhe as Relações Internacionais. As cadeias produtivas são cada vez mais internacionalizadas, mais dispersas, e mais sujeitas a impactos decorrentes de processos políticos, às vezes globais, às vezes regionais, mas, às vezes, e significativamente, locais, no âmbito de cidades e vilas. Muito provavelmente, sua empresa já foi afetada por alguma situação desse tipo, e você nem percebeu as causas, nem como antecipar-se e preparar-se para lidar com elas. Preste atenção: o mundo é grande, e ele vem por aí em alta velocidade. Você pode aproveitar sua energia ou então ser atropelado por ele. Pessoalmente, recomendo a primeira opção.
[1] Eugenio Diniz é professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas, Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia, e Pesquisador 1C do CNPq. Foi Presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais — ABRI de julho de 2015 a julho de 2019.