Semicondutores e a disputa entre China e Taiwan

Eugenio Diniz

2/2/2022

Embora a pesquisa, o desenvolvimento e o desenho de chips ainda ocorram principalmente nos EUA, Taiwan domina amplamente a fabricação de semicondutores: em 2020, Taiwan respondeu por aproximadamente 63% de um mercado de aproximadamente 85,13 bilhões de dólares, sendo que uma única firma, a Taiwan Semiconductors Manufacturing Company (TSMC), domina o mercado com algo em torno de 54% da produção mundial. Em seguida, veio a Coreia do Sul (principalmente a Samsung), com 18% do mercado; a China (principalmente a Semiconductors Manufacturing International Corporation ou SMIC) respondeu por aproximadamente 6%. O restante da produção dispersa-se por vários países, com a Global Foundries detendo, no geral, 7% do mercado. Mas, como se trata apenas de manufatura, a atual falta de chips, que tem dificultado ou até paralisado a produção de diversos bens, particularmente automóveis, poderia ser suprida simplesmente abrindo-se novas fábricas ou expandindo-se as atuais, e, mesmo que com algum custo extra, a China também deve ser capaz de se libertar dos grilhões de sua dependência de Taiwan nisso, certo?

Na verdade, não é bem assim, por vários motivos. Antes de mais nada, é um equívoco tratar os semicondutores como se fossem um produto homogêneo. As unidades de processamento geral (CPUs), unidades de memória e unidades de processamento gráfico (GPUs), utilizadas em computadores e smartphones, são bem diferentes, por exemplo, dos chips utilizados em automóveis ou de sensores. Além disso, as características econômicas e estruturais da produção dos diferentes tipos de semicondutores também são diferentes, bem como as suas características geográficas.

A indústria de chips

Os custos de novas plantas são bastante elevados – os custos iniciais, por exemplo, variam entre 5 e 20 bilhões de dólares –, sendo que a maior parte do investimento é bancado pelos chips de ponta, que são bastante caros, e cujo mercado é bastante restrito: são os chips que vão nos smartphones mais caros e nos computadores e notebooks de maior desempenho. Uma vez que os custos são basicamente cobertos pelas vendas dos chips de primeira linha, os mais antigos, cujos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e custos de instalação já foram amortizados, podem ser vendidos a baixo custo. Na hipótese de novas plantas para suprir somente a demanda por chips de menor desempenho, seu custo unitário seria muito elevado, a tal ponto que diminuiriam a competitividade dos produtos que os incorporassem. Portanto, para que uma nova fábrica ou planta seja economicamente viável, ela precisa ser capaz de competir no mercado restrito de produtos como os melhores computadores e smartphones.

Esse segmento do mercado se caracteriza por uma dinâmica muito acelerada, encapsulada na famosa “lei de Moore”, segundo a qual o número de transistores em um circuito integrado dobra aproximadamente a cada dois anos. Em função da precisão exigida e das especificidades da produção, novas plantas para novos chips são concebidas em estreita colaboração com os desenvolvedores. As grandes líderes no segmento de chips de alto desempenho dispendem somas significativas em pesquisa e desenvolvimento, que, por sua vez, dependem de softwares específicos, chamadas de ferramentas de automação de design em eletrônica (EDA). O mercado de EDAs é controlado por três firmas, todas elas baseadas nos EUA, e foram proibidas de transacionar com companhias chinesas, o que atingiu particularmente a HiSilicon, subsidiária da Huawei para o desenvolvimento de chips, tornando-lhe praticamente impossível desenvolver novos chip avançados, com forte impacto negativo na indústria chinesa de 5G. A perdurar essa situação, a HiSilicon poderá rapidamente ficar de fora do mercado de chips de alto desempenho, fazendo com que a Huawei tenha que comprar chips não apenas fabricados, mas também desenhados por outrem. O impacto sobre a Huawei é tão grande que a firma chinesa está em processo de reinventar-se, redefinindo o foco de suas atividades.

Outra dificuldade reside nos equipamentos e insumos para a manufatura de chips. Embora os insumos químicos (cuja produção é liderada pelo Japão, com mais de 50% do mercado) não configurem um gargalo muito significativo, o principal equipamento utilizado na produção dos chips mais avançados é a máquina de litografia de ultravioleta extrema (EUV). Esta máquina, cujo desenvolvimento levou nada menos que dezessete anos, é produzida por uma única firma no mundo, a holandesa ASML. É um equipamento caríssimo. Mas o principal problema, para o caso da China, é que a produção das EUVs depende de muitos componentes, vários tendo apenas um fabricante cada, — nos EUA, em boa parte dos casos. De certo modo, a China está numa corrida contra o tempo para tentar internalizar a produção dos componentes críticos para as EUVs (por si mesmo, um desafio gigantesco), antes que controles ainda mais severos de exportação lhe sejam impostos. O fato é que a mais recente planta de produção de wafers de silicone da SMIC, a maior fabricante de semicondutores chinesa, está na faixa de 28 nanômetros, bem atrás das modernas 7 e 5 nanômetros, já anunciadas nos EUA, Europa e Taiwan — nesse último caso, aliás, Taiwan começará a produzir chips de 3 nm (em Tainan) e até de 2 nm (em Hsinchun e, talvez, uma outra em Taichung). Estas, em princípio, ajudarão a suprir as demandas relacionadas, por exemplo, à telefonia móvel 5G, cidades inteligentes, Internet das Coisas e veículos autônomos.

Chips e automóveis

Já a presente escassez de chips para automóveis relaciona-se a outra dinâmica. Os chips comumente utilizados nos automóveis atuais são diferentes das CPUs, chips de memória e GPUs, e também dos chips para aplicações especifícas (ASICs), como aceleradores de Inteligência Artificial. Firmas europeias, japonesas e estadunidenses lideram amplamente o segmento de chips para automóveis. Entretanto, desde o início da pandemia da Covid-19, ocorreram dois processos concomitantes: em geral, a indústria automobilística reduziu suas encomendas em função das políticas de isolamento e distanciamento social, e a indústria de computadores aumentou dramaticamente suas encomendas em função da demanda trazida pelos home-offices e pelas atividades virtuais de educação. Em função disso, a produção de wafers de silicone foi praticamente direcionada para a fabricação dos chips de computador, o que comprometeu a produção de chips de automóveis, e obrigou à redução das atividades por parte da indústria automobilística. Como essa atual escassez é temporária (embora esteja demorando…), instalar novas unidades produtivas para atender a esse descompasso circunstancial entre oferta e demanda de chips de automóvel não é uma alternativa economicamente viável; qualquer expansão nesse setor tem que basear-se na expectativa de demanda sustentada futura. Esse é o caso, por exemplo, de uma nova instalação para chips de 22 nm e de 28 nm, estimada em 7 bilhões de dólares, que a TSMC, em conjunto com a Sony, está construindo no Japão, e cujas operações deverão iniciar-se em 2024.

China e Taiwan

Surge, então, a questão: a necessidade de chips traria incentivos adicionais à China no sentido de assumir o controle de Taiwan? Na verdade, também aqui, o problema é bem mais complexo do que pareceria à primeira vista. Na eventualidade de a China tomar Taiwan e obter o controle das instalações de produção de chips, quaisquer benefícios tenderiam a ser apenas de curtíssimo prazo: presumivelmente cortada do restante das cadeias de suprimentos do setor, a acelerada obsolescência das fábricas pode acabar condenando a China a estagnação num setor absolutamente crucial para a atividade econômica futura. É possível que a fragilidade  da China na cadeia de valor dos semicondutores seja um fator muito significativo no cálculo desta quanto ao balanço de custos, riscos e benefícios de uma eventual invasão à ilha – mesmo diante de uma eventual percepção de enfraquecimento político e estratégico dos EUA, decorrente do recente vexame na retirada do Afeganistão, em que pesem as declarações do Presidente Joe Biden e do Secretário de Estado Anthony Blinken de que os EUA estariam ao lado de Taiwan em caso de uma invasão chinesa; afinal, o fato de que tais declarações tenham sido feitas e depois negadas, ou pelo menos matizadas, pode ter produzido o efeito oposto ao da dissuasão desejada.

Por outro lado, começa a delinear-se uma tendência de diversificar geograficamente a produção dos chips de primeira linha, inclusive pela TSMC, que está investindo entre 10 e 12 bilhões de dólares numa planta para chips “5-nano” no Arizona; há rumores de que talvez venha a construir até 6 novas plantas no Estado. Já a Samsung está investindo 17 bilhões de dólares numa planta em Taylor, no Texas., e a Intel anunciou investimentos de 20 bilhões de dólares em duas novas plantas em Chandler, no Arizona. Desse modo, 2023 talvez seja uma espécie de prazo final para que a China possa obter alguma vantagem, ainda que imediata e de curto prazo, tomando o controle da produção de chips em Taiwan. Dada a capacidade de reação global, ampliada pela nova realidade geopolítica da indústria e de sua cadeia de suprimentos — ainda que possivelmente matizada pela tibieza percebida da atual política externa dos EUA —, é possível que as autoridades chinesas considerem que, tudo somado, os custos econômicos, políticos e militares seriam muito maiores que os potenciais benefícios políticos e econômicos decorrentes de uma eventual invasão da ilha, principalmente nos prazos médio e longo.

Em suma, a escassez de chips para automóveis ainda deve durar alguns meses; a China encontra-se numa situação dificílima nesse segmento cada vez mais crucial para as atividades econômicas e militares, e suas possibilidades se reduziram com as restrições que começaram a lhe ser impostas a partir de 2019; uma invasão a Taiwan não lhe traria benefícios duradouros no que concerne a semicondutores. A grande incógnita em todo esse cálculo é em que medida a reunificação com Taiwan poderia ser considerada tão importante para as lideranças políticas chinesas, ou para uma parte significativa delas, que lhes fizesse valer a pena arcar com todos esses riscos e custos potenciais. Não há como saber a resposta a essa charada, mas, possivelmente, tudo se reduza a isso, e não a supostos “interesses econômicos subjacentes”.

Eugenio Diniz é Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia; professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e da SKEMA Business School; e membro do International Institute for Strategic Studies (IISS, Londres).

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