Eugenio Diniz
22 de novembro de 2022
Obs.: Esse texto foi escrito em novembro de 2022, mas não foi publicado então. Como, recentemente, pareceu-me oportuno publicá-lo, resolvi fazê-lo, sem alterações.
Para os próximos anos, será necessário reconstruir o relacionamento entre a sociedade brasileira e algumas agências e organizações do Governo Federal. Alguns problemas vêm de longa data, outros são mais recentes, mas é necessário enfrentá-los, pois seu acúmulo nos traz o risco de que, no futuro, elas se tornem disfuncionais. Isso é mais visível no âmbito da Defesa, mas é uma tarefa importante também na Inteligência.
A Lei nº 9.883/1999, que criou a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), estabeleceu-a como “órgão de assessoramento direto ao Presidente da República”; mas, apenas 4 meses depois, a MP nº 1.999/2000 subordinou-a ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), situação que, com exceção de um breve interregno em que a ABIN esteve vinculada à Secretaria de Governo da Presidência da República, vige até hoje. Essa subordinação é infeliz, por múltiplas razões: na prática, subordina a atividade de inteligência estratégica às outras responsabilidades do GSI – que, por frequentemente serem urgentes, acabam esvaziando a razão de ser da ABIN; por conta dessas outras responsabilidades, profissionais de inteligência podem acabar sendo alocados para outras tarefas, particularmente a segurança de dignitários, prejudicando a atividade de inteligência propriamente dita; como a coordenação do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), que era originalmente atribuição da ABIN, também passou a ser feita pelo GSI, o mesmo fenômeno de subordinação da atividade de inteligência pode espalhar-se para todo o sistema; e, ainda, interpõe-se um outro filtro (e, eventualmente, outra orientação) à obtenção de inteligência pelo Presidente, o que é evidentemente inadequado, independentemente das qualidades do titular do GSI. A subordinação da ABN ao GSI, ou a qualquer outro órgão, não traz nenhum benefício que compense aqueles sacrifícios. O Presidente e a sociedade brasileira serão muito mais beneficiados pela separação entre o GSI e a ABIN, restabelecendo-a como órgão de assessoramento direto ao Presidente e de coordenação das atividades de inteligência federal (atribuição que foi transferida ao Gabinete de Segurança Institucional pelo Decreto Nº 9.209, de 27 de novembro de 2017).
Uma outra prática prejudicial recorrente é a de designar, como Diretor-Geral da ABIN, pessoas provenientes de outros órgãos que também realizam algum tipo de atividade de inteligência – desde sua criação, a ABIN teve 9 Diretores-Gerais, sendo 5 da ABIN, 2 da PF, 1 do Exército e 1 da Polícia Civil de São Paulo. O problema é que, muito compreensivelmente, essas pessoas trazem as perspectivas de seus órgãos de origem (para os quais, presumivelmente, retornarão), que tendem a ser mais específicas, particulares, voltadas para atividades determinadas, o que tende a esvaziar o caráter mais abrangente das atividades de inteligência da ABIN – e, incidentalmente, e de maneira claramente não intencional, inflar a importância da perspectiva particular de um órgão específico, sobrepondo-a às dos demais órgãos do SISBIN (atualmente são 48) – o que pode gerar ressentimento e tornar-se um fator de prejuízo à cooperação e ao bom relacionamento entre os órgãos do sistema. Reitere-se: não é um problema de capacidade, compromisso, dedicação ou qualificação pessoal e profissional, e nem do valor e qualidade dos órgãos de origem, mas sim de perspectiva com que a atividade de inteligência (da ABIN e do SISBIN) é concebida, formulada e executada, e a PNI implementada. Tanto a ABIN quanto o SISBIN funcionarão melhor se a direção geral da ABIN for exercida por alguém que: (i) ou provenha de fora de outros órgãos públicos que realizem atividades de inteligência, como uma forma de trazer perspectivas novas e, eventualmente, de facilitar o relacionamento com outras instâncias – particularmente o Presidente, ou o Congresso Nacional; ou então (ii) provenha da própria ABIN, como forma de aproveitar experiência e competência na produção de inteligência mais abrangente, e de valorizar os profissionais da Agência. A meu ver, a pior opção é a imposição, ainda que involuntária, sobre a ABIN e o SISBIN, de perspectivas particulares, inteiramente compreensíveis e adequadas para as respectivas agências e órgãos, mas insuficientes para a atuação das lideranças políticas de altíssimo escalão[1].
Por outro lado, a legislação referente à atividade de inteligência atribui importante papel ao Legislativo, e em particular à Comissão Mista de Controle da Atividade de Inteligência (CCAI), a quem compete não só a fiscalização da atividade, como também colaborar na própria formulação da Política Nacional de Inteligência (PNI), apresentando sugestões à proposta, antes da sua fixação pelo Presidente. Entretanto, a atuação da CCAI tem sido muito irregular:
Fonte: elaborado a partir das informações disponíveis em https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=449&data1=1999-12-07&data2=2022-12-20
Note-se que, em 2020, não foi realizada nenhuma reunião da CCAI. Além disso, das 28 reuniões realizadas de 2014 a 2022, 12 foram dedicadas a questões orçamentárias e 3 foram de instalação da Comissão; ou seja, menos da metade das reuniões foi dedicada a questões substantivas da atividade de inteligência. Para se dar um exemplo, a Política Nacional de Inteligência atualmente vigente foi fixada em 2016, pois a proposta de 2020 ainda não foi apreciada pela CCAI; do mesmo modo, a Estratégia Nacional de Inteligência vigente ainda é a de 2017. Esta é uma situação muito ruim, pois a ENINT e a PNI dão as diretrizes para os Planos de Inteligência, pelos quais as componentes do SISBIN detalham suas atuações futuras. Na ausência dessas diretrizes, os esforços ficam mal direcionados, a inércia se impõe, os diversos órgãos acabam atuando de maneira descoordenada, incongruente, e a atividade perde muito de sua eficácia; no limite, as organizações farão ou o que faziam antes ou então o que considerarem, segundo seus próprios critérios e perspectivas, ser o mais importante. Tanto a fiscalização quanto a direção da atividade de inteligência se beneficiariam muito de uma maior proatividade da CCAI, e diminuiriam os riscos de falhas graves e até mesmo de eventuais exorbitâncias.
A dificuldade é que, naturalmente, a atenção dos congressistas é sempre demandada por outras questões prementes, urgentes. Sob este aspecto, seria bastante benéfico para a própria ABIN que ela atuasse mais proativamente junto ao Congresso Nacional. Uma opção interessante poderia ser a criação de um escritório permanente de ligação da ABIN no próprio Congresso, de modo a intensificar os contatos de parte a parte, e facilitar o relacionamento entre ambos. Ao contrário do que frequentemente se imagina, a receptividade ao controle externo é muito alta na ABIN, e há muita gente disposta a colaborar de verdade.
Uma outra instância de controle e de direção para a atividade de inteligência no âmbito federal é o Conselho Consultivo do SISBIN, a quem compete, entre outras atribuições, emitir pareceres sobre a execução da PNI e opinar sobre propostas de integração de novos órgãos e entidades ao SISBIN. São previstas 3 reuniões ordinárias anuais do Consisbin, sem prejuízo de eventuais reuniões extraordinárias. Entretanto, desde 2019, foram realizadas apenas 4 reuniões: 1 em 2019, nenhuma em 2020, 2 (virtuais) em 2021 e 1 em 2022. Isso é evidentemente prejudicial tanto para a realização das atividades de inteligência quanto para o acompanhamento e a fiscalização da PNI – a de 2016, já desatualizada, como observado antes.
Atuações mais regulares, assertivas e proativas da CCAI e do Consisbin poderiam até mesmo contribuir para dirimir algumas dúvidas e controvérsias. Por exemplo, causou espécie o Art. 13 do Anexo I do Decreto Nº 10.445, de 30 de julho de 2020, que permitiu à Escola de Inteligência capacitar, em inteligência, pessoas indicadas pelo SISBIN ou por entidades ou órgãos parceiros da ABIN; foram apresentados inclusive 2 projetos de decretos legislativos sustando o referido decreto – ambos estão parados desde dezembro de 2020. A desconfiança é compreensível, principalmente à luz do contexto de então, após o Presidente sugerir que se informava por um “sistema de inteligência próprio”. Mas, a rigor, se os órgãos do SISBIN são aprovados pelo Consisbin, com fiscalização ativa da CCAI, e não apenas com reações de curta duração, e que não têm sequência, a questão não tem tanta importância: não é irrazoável que pessoas em cargos de confiança nos órgãos pertinentes – por exemplo, um Diretor-Geral da ABIN que não provenha de órgãos públicos – receba treinamento em inteligência; se as parcerias do SISBIN são aprovadas pelo Consisbin e fixadas em decreto, caso a CCAI discorde da parceria, pode-se encaminhar um PDL sustando o ato. Mas não faz sentido: (i) ter pessoas realizando atividade de inteligência sem ter formação; (ii) nem multiplicar órgãos de formação de inteligência; (iii) nem impor ao Presidente e a outras lideranças que escolham necessariamente, para funções de confiança, pessoas que provenham de alguma carreira no serviço público. Reitere-se que isso exige atuação mais consistente das instâncias de fiscalização: a CCAI poderia, inclusive, cobrar a realização de reuniões regulares do Consisbin.
O atual momento oferece a oportunidade para o enfrentamento dessas questões. A atividade de inteligência é sempre espinhosa, difícil, e as condições necessárias para sua realização, principalmente o sigilo, inevitavelmente geram desconfianças, por dificultarem a identificação de eventuais abusos e exorbitâncias. Isso só pode ser contido pelo exercício constante e assertivo, e não apenas reativo e eventual, da fiscalização e do monitoramento por parte das instâncias pertinentes.
Eugenio Diniz é Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia; professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas; membro do International Institute for Strategic Studies (IISS, Londres); diretor da International Association for Security and Intelligence Studies (INASIS); ex-analista da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
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[1] A respeito, ver o excelente comentário de Marco Cepik em https://fontesegura.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/04/Ed_37_(Multiplas_vozes)_A-Policia-Federal-o-SISBIN-e-a-Democracia.pdf.[:]