Decisões difíceis na política de defesa brasileira

Eugenio Diniz
19/10/2022

Nos últimos anos, houve dano à relação entre as Forças Armadas e a sociedade no Brasil. Esse é um problema sério, e deve ser enfrentado. Outros problemas em política de defesa são mais antigos, já vêm de mais tempo, e são ainda mais difíceis de enfrentar. Algumas sugestões foram feitas em Octávio Amorim Neto e Igor Acácio e também por  Marco Cepik e Sebastião C. Velasco e Cruz. A ideia aqui é identificar outros aspectos relevantes do problema e, em alguns casos, fazer sugestões que diferem das de outrem, explicando o porquê.

Desafios

Equipamento

Comecemos pelo equipamento[1]. Atualmente, a Marinha do Brasil (MB)[2] tem 5 submarinos e 85.000 efetivos, o que equivale a aproximadamente 6 submarinos por 100.000 efetivos. A MB tem também 8 navios de combate de superfície (NCS)[3], o que gera a razão de aproximadamente 9 por 100.000. Somando-se as duas categorias, temos então o que podemos chamar, na falta de nome melhor, de densidade combatente da MB: 0,00015, ou 15 por 100.000. Para se ter uma ideia, a África do Sul, com a qual o Brasil compartilha algumas características estrategicamente relevantes[4], tem o equivalente a 30 submarinos e a 60 NCSs por 100.000 efetivos de sua Marinha, o que dá a esta a densidade combatente de 0,00090, ou 90 por 100.000 – 6 vezes superior à da MB. Numa outra ponta, um país tão diferente do Brasil em termos estratégicos quanto Israel[5] tem, nas suas forças navais, o equivalente a 74 NCSs e a 53 submarinos por 100.000 efetivos, dando-lhe uma densidade combatente de 0,00126 ou 126 por 100.000 – 8,4 vezes superior à da MB.

No caso do Exército Brasileiro (EB), se somarmos os veículos considerados tanques[6] pelo Military Balance 2022, teremos 754 tanques para 214.000 efetivos, equivalendo a 352 por 100.000; somando os veículos blindados de infantaria[7], temos 1.383 veículos para 214.000 efetivos, ou 646 por 100.000; somando as peças de artilharia autopropulsada e de artilharia rebocada, temos 600 peças, numa razão de 280 por 100.000; os sistemas de lançamento múltiplos de foguetes são 36, resultando numa razão de 17 por 100.000. Tudo somado, o EB tem, em 2022, a densidade combatente de 0,01296, ou aproximadamente 1.300 por 100 mil. Já a densidade combatente da força terrestre da África do Sul é 0,04850, ou 4 vezes maior que a do EB; e a do Exército israelense é 0,06533, ou 5 vezes a do EB.

Por fim, no que concerne à FAB, ao somarmos caças e aeronaves de ataque ao solo, são 76[8] aeronaves para 67.500 efetivos, com uma densidade combatente de 0,00113 ou 113 por 100 mil. Na África do Sul, a densidade combatente da Força Aérea é 0,00265 (2,35 vezes a da FAB), e, em Israel, 0,00431 (quase 4 vezes superior à da FAB). Se somarmos todos os caças Gripen previstos, a densidade combatente da FAB sobe para 0,00166 – ainda muito baixa.

Cabem algumas observações.

Primeiro, o que foi dito acima deixa de lado importantes aspectos qualitativos: todos os 296 MBTs brasileiros são de modelos antigos (Leopard 1A1, Leopard 1A5 e M60), assim como pelo menos metade dos APCs e mais da metade dos caças (variantes dos F-5).  Em que pesem modernizações eventuais, o desempenho daquelas plataformas é, sob vários aspectos, bastante inferior não só aos de última geração, mas também aos da geração anterior ou até duas gerações antes. Se ponderarmos esses aspectos qualitativos, as desvantagens brasileiras tenderão a ser ainda maiores.

Segundo, há que levar em conta uma série de fatores logísticos que, normalmente, não aparecem em anuários. Dentre aqueles fatores, destacam-se a disponibilidade de munição, a de peças de reposição e a de combustível, inclusive para treinamento. Por exemplo, volta e meia, aparecem na mídia relatos de que a disponibilidade de munição seria suficiente para apenas 1 hora de combate. Quanto a treinamento, é notório que forças mal treinadas terão desempenho inferior – e desempenho inferior, no caso, significa mais mortes, mais destruição, menor margem de manobra política e estratégica.

Terceiro, é importante destacar que esses valores variaram no tempo. Contrastando com a situação de 15 anos atrás (2007), a densidade combatente do EB melhorou: em 2007, esse valor era 0,00905 – ou seja, houve uma melhora de aproximadamente 43%. Essa melhora se deveu a alterações no numerador e no denominador: houve aumento no total de equipamentos (com destaque para a chegada dos Guaranis), mas também redução do número total de efetivos do Exército: de 238.200 em 2007 para 214.000 em 2022, ou uma diminuição de 24.200 efetivos – uma redução de mais de 10%. Entretanto, essa economia feita pelo Exército foi compensada pelo aumento de efetivos da Marinha, que, de 62.261 efetivos em 2007, passou para 85.000 em 2022 – um aumento de 22.739, ou mais de 1/3; ao mesmo tempo, o total de NSCs em relação a 2007 caiu de 15 para 8, e o de submarinos ficou constante. Ou seja: enquanto a MB aumentou seu efetivo em mais de 1/3, seus meios combatentes principais diminuíram, o que fez com que a densidade combatente da MB, em 2022, caísse a menos da metade em relação a 2007 – de 0,00032 para 0,00015. Já na FAB, embora seu efetivo total praticamente não tenha variado (67.440 em 2007, 67.500 em 2022), o somatório de aeronaves de combate caiu de 286 em 2007 para 76 em 2022 – uma redução de 73,43%, trazendo a densidade combatente da FAB para 1/3 do que era em 2007.

Essa situação é dramática, e precisa ser enfrentada urgentemente. Caso contrário, corre-se o risco de que, no futuro, as FFAA brasileiras sejam vistas, ainda que injustamente, como “cabides de emprego” – o que será péssimo para seu prestígio e para a defesa nacional.

Orçamento

O problema é que a solução que pareceria óbvia – aumentar o orçamento do Ministério da Defesa (MD), de modo a viabilizar a aquisição de equipamentos e do material necessário para seu treinamento e funcionamento adequados – não é realista. No Orçamento da União previsto para 2022, a dotação do MD foi de R$ 116.493.772.013,00, equivalente a 7,2% do total do orçamento do Poder Executivo, atrás apenas do Ministério da Saúde (9,9%) e do Ministério da Educação (8,5%). Não há margem para um aumento expressivo da dotação orçamentária do MD. Daquele montante, 77,8% são para gastos com pessoal e encargos sociais (sendo que, deste valor, 68,9% são do orçamento fiscal e 31,1% do orçamento de seguridade); 11,6% para custeio; 0,9% são juros e encargos da dívida; 1,8% para amortização da dívida; e 7,5% para investimento[9].

Os números acima são claros: a única maneira de melhorar a densidade combatente das FFAA e aumentar os recursos para investimentos e custeio das FFAA é reduzir as despesas com pessoal e encargos sociais – supondo-se que não haja redução da dotação orçamentária do MD. Como a remuneração para membros das FFAA é diferenciada[10]; e como as despesas com pessoal e encargos sociais de inativos é praticamente incompressível, resta a alternativa de, em curtíssimo prazo, reduzir o pessoal da ativa das FFAA. Um primeiro passo rápido e viável seria trazer de volta às suas forças de origem os efetivos que estão atuando no Poder Executivo em atividades sem relação com a defesa, diminuindo esse total no recrutamento anual – já que não será necessário recrutar pessoas para executar as funções na defesa que aquelas pessoas não estavam realizando por estarem executando outras atividades.  Outras pessoas podem executar (sem os benefícios adicionais próprios do pessoal militar) as funções que não têm relação com a defesa. Seria pouco, mas já seria um começo.

Nesse ínterim, é possível que algumas demandas em termos de reaparelhamento sejam mais urgentes que outras. Só há um modo de evitar que o conflito distributivo que se seguirá degenere em ressentimentos e animosidades institucionalizadas (o que seria bastante prejudicial às atividades da defesa): é fazendo com que esses cortes e prioridades sejam negociados não entre as Forças diretamente, mas junto a uma instância subordinante, isto é, ao Ministro da Defesa, agindo em nome do Presidente da República.

O Ministério da Defesa

A ideia de que o Ministro da Defesa seja um civil e não um militar (mesmo reformado) vai muito além da expressão simbólica do princípio da subordinação das FFAA ao poder político numa democracia: ela é crucial para a eficácia e a eficiência das FFAA e para sua atuação concertada em prol da defesa do país. É impraticável e injusto pedir às FFAA que administrem e enfrentem, por si sós, o conflito distributivo decorrente das restrições orçamentárias – afinal, nesse caso, ou uma das Forças prevalecerá sobre as demais, o que poderia ser visto como uma derrota ou humilhação para as outras forças e suas lideranças; ou haverá algum arranjo em que o conflito distributivo é evitado em prejuízo do adequado preparo para a defesa. Porém, se esse conflito é arbitrado por uma instância externa às Forças e com clara competência para fazê-lo – obviamente, o Ministro da Defesa –, o enfrentamento do conflito dar-se-á com base na maior ou menor capacidade de argumentar junto ao Ministro, que decidirá com base nos argumentos apresentados, nas suas prioridades e nas do Presidente da República, ponderando-se o leque de interesses resultante das interações entre diversas coalizões políticas e sociais.

Mas o Ministro, individualmente, terá, necessariamente, pouca capacidade de fazê-lo, se não contar com quadros que o auxiliem. Aqui há um problema: se os quadros do MD forem constituídos por militares (ainda que não estejam mais na ativa), a socialização e as lealdades formais e informais desenvolvidas ao longo de décadas tenderão a reintroduzir as disputas entre as Forças, esvaziando o MD de sua capacidade (e prerrogativa) de arbitrar as disputas entre as Forças para benefício geral, inclusive das próprias FFAA e de suas respectivas lideranças. Portanto, uma necessidade urgente para a defesa do Brasil é a criação da carreira própria do MD, em concurso público de amplo recrutamento. No que concerne a esse assunto, e também à necessidade de o Congresso Nacional construir sua capacidade própria de debate em questões de defesa, independentemente das FFAA, nada temos a acrescentar ao que foi dito por Amorim e Acácio.

Isso não significa que, a partir desse reequacionamento imediato, se deva proceder imediatamente à implementação plena do Plano de Articulação e Equipamento de Defesa (PAED). Esse Plano foi desenvolvido em circunstâncias diferentes. Desde então, houve, globalmente, grande avanço técnico em capacidades bélicas (com destaque para drones, armamentos hipersônicos, armamentos de energia dirigida, sensoriamento, processamento e transmissão de dados), importantes acontecimentos e experiências bélicas a digerir, e, simplesmente, as expectativas orçamentárias razoavelmente otimistas que vigiam não existem mais. Os chamados projetos estratégicos das FFAA terão que ser rediscutidos, e prioridades terão que ser estabelecidas. Aqui, concordamos com Cepik e Velasco e Cruz, e o Congresso Nacional terá um importante papel também.

Aqui é preciso encarar um problema. É verdade que a multiplicação de ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) interfere negativamente no preparo e na realização de atividades relacionadas à defesa propriamente dita. Por outro lado, ainda não está disponível outro instrumento que possa responder à altura àquelas necessidades. A situação da ordem e da segurança pública é bastante precária em várias unidades da federação. O ideal é que a Força Nacional de Segurança Pública, ou uma Guarda Nacional, ou outra instituição equivalente, venha a ser capaz de dar conta desse tipo de demanda, mas, salvo melhor juízo, ainda não é o caso. Essa é também uma questão a ser enfrentada – embora não pelas instituições relacionadas à defesa; mas, pelo menos até lá, talvez seja necessário manter essa possibilidade aberta. Porém, as FFAA devem ser preservadas para atuar em seu papel principal, e a frequência com que são chamadas a executar operações de GLO é prejudicial sob esse aspecto, e tende a multiplicar situações com repercussão negativa para o relacionamento entre as forças e a sociedade brasileira — o que não é bom para a defesa nacional, e nem para as forças como instituições.

Comando

Por outro lado, não pode haver qualquer ambiguidade quanto ao Comando Supremo das FFAA, que, na forma da lei (inclusive nas restrições por esta impostas), pertence aos Presidentes da República, e nem quanto à autoridade e às prerrogativas do Ministro da Defesa. Aqui, então, divergimos do proposto por Cepik e Velasco e Cruz (2022): no nosso entendimento, há muito mais desvantagens do que vantagens em tornar o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas parte da cadeia de comando. Estados-Maiores são e devem ser órgãos de planejamento e assessoramento. Em caso de guerra, aí sim, faz sentido estabelecer um Comandante-Geral das FFAA, subordinado ao Presidente da República (que permanece com a palavra final), distinto do Chefe do Estado-Maior Conjunto. Em tempo de paz, tornar o Estado-Maior Conjunto parte da cadeia de comando é   dar muito poder a uma pessoa só.

Alguns caminhos possíveis

Realisticamente, os recursos para investimento das FFAA terão que vir da redução das despesas correntes, principalmente dos gastos com pessoal e encargos sociais. Como não há como reduzir imediatamente as despesas com inativos e pensões, a única possibilidade é reduzir os gastos com pessoal da ativa – que, ao longo do tempo, produzirão também, no futuro, uma redução dos gastos com inativos e pensões[11].

Por outro lado, não parece razoável estabelecer um corte linear entre os três Comandos. Como ficou claro, embora a discussão da densidade combatente mostre que há muita gordura para queimar nas três Forças, a situação é muito pior na Marinha e na FAB. Em particular, se a Marinha do Brasil reduzisse seus efetivos imediatamente em 22.739 pessoas (uma diminuição de 26,75%), sua densidade combatente depois disso (0,00021) ainda seria muito pior que a de 2007 (0,00032). A MB pode reduzir drasticamente, sem prejuízo, 22.000 pessoas para começar a discussão para valer. Presumivelmente, os cortes seriam, proporcionalmente, muito maiores nos Comandos da Marinha e da Aeronáutica que no do Exército, mas ocorreriam também neste.

A comparação com a densidade combatente em outros países pode fornecer um guia aproximado para essa definição, mas há que levar em conta diferenças qualitativas nos equipamentos, de um lado, e outras diferenças políticas, sociais e estratégicas. Enquanto é evidente que os principais equipamentos podem ter demandas diferentes de guarnição e de apoio logístico, esses fatores podem variar, por exemplo, por causa de distâncias a percorrer e dos modais de transporte a serem empregados (as distâncias são muito maiores no Brasil que em Israel, por exemplo, o que pode exigir equipamento, pessoal e infraestrutura logística maiores, mesmo sem levar em conta diferenças nos equipamentos). De outro ponto de vista, a título de ilustração, uma maior ênfase em aeromobilidade poderia trazer uma redução no total de instalações (talvez outras precisem ser ampliadas) e de pessoal, inclusive de oficiais, mas em menor proporção. Isso é importante porque Forças Armadas que contam com a mobilização ao invés de contar somente com pessoal profissional permanente precisariam ser, a rigor, ainda mais enxutas que suas contrapartes estritamente profissionais, o que é o contrário do que observamos com as densidades combatentes atuais das FFAA no Brasil. Ainda assim, seria possível, além de reduzir as necessidades anuais de conscrição, reduzir também as entradas anuais nas academias militares.

É importante ter em mente um aspecto sensível: a redução de instalações diminui também as oportunidades de comando para oficiais, e pode impactar nos percursos de carreira até os postos de oficiais generais de quatro estrelas. Sob esse aspecto, a redução da entrada anual nas academias já tenderia a diminuir essa pressão. Mas é importante reduzir também alguns postos do mais alto escalão. Para ilustração, sem intenção de exaustividade, não há necessidade de que o Comando da Escola Superior de Guerra (ESG) seja de um oficial general de quatro estrelas; de que o Diretor-Geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha seja um Almirante de Esquadra; de que a Fundação Habitacional do Exército seja comandada por um General de Exército; nem de que o Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial seja comandado por um Tenente Brigadeiro do Ar. Sem dúvida, a economia diretamente obtida dessa redução é insignificante, mas não é disso que se trata: trata-se do efeito em cascata que culminaria na menor demanda por postos de comando ao longo da carreira, de modo a viabilizar a redução da necessidade total anual de oficiais.

Como dito anteriormente, não é sensato nem justo pedir às Forças que negociem entre si essas reduções – até porque essas reduções tenderão a implicar redefinições estratégicas e de prioridades, com implicações mútuas. Para continuarmos no exemplo, uma ênfase maior em aeromobilidade poderá exigir um aumento das aeronaves de transporte, na FAB, o que, por sua vez, poderia implicar numa maior demanda de aeronaves de caça para, exatamente, proteger esse transporte. Portanto, uma eventual decisão por maior aeromobilidade tem implicações tanto no EB quanto na FAB, e pode implicar redistribuição de recursos entre as FFAA, o que afetaria também a MB. A complexidade e o potencial conflitivo de tais negociações são tais que é razoável esperar que, se ocorrerem somente entre as FFAA, tenderiam a não produzir alteração significativa.

Assim, apesar da necessidade de redução geral dos gastos com pessoal no MD, é urgente criar e qualificar seu quadro de funcionários permanentes. Isso não é, de modo algum, uma incoerência ou inconsistência: a redução urgente de pessoal no total das forças é da ordem de muitos milhares, e o tamanho do quadro permanente do MD é da ordem de, no máximo, pouquíssimas centenas. Esse quadro é que deverá auxiliar o Ministro da Defesa na tomada de decisão.

Mas, como já dito, todas essas decisões têm repercussões estratégicas de longo prazo, e as FFAA e os órgãos de assessoramento, incluindo o Estado Maior Conjunto das FFAA, terão que ser consultados e ouvidos. Diga-se de passagem, este é mais um argumento contrário à inclusão do Chefe do Estado Maior Conjunto na cadeia de comando: ele tem que opinar sobre assuntos que podem afetar negativamente sua força de origem. Se ele está na cadeia de comando, essa tensão pode ser insustentável.

Isso quase certamente significará redefinição de prioridades dentro de cada FA e entre elas. Ao mesmo tempo, é possível imaginar que, consumada essa transição inicial, e supondo-se a manutenção, grosso modo, da parcela do orçamento da União que caberá ao MD, sobrem bem mais recursos para investimento. Combinado com os avanços técnicos em escala global, que estão redefinindo inclusive as relações entre forças e entre armas, é possível que o PAED atual se mostre inadequado. Nesse caso, após a criação e qualificação dos quadros permanentes do MD, esse período de transição pode bem ser aproveitado para uma discussão profunda, envolvendo toda a sociedade brasileira, a respeito de como configurar as necessidades de defesa do Brasil, em geral, e as necessidades de cada FA, em particular. Por exemplo, no Exército, poderá ser necessário reavaliar o balanço entre MBTs, APCs e IFVs, suas necessidades em termos de artilharia – levando em conta as mudanças advindas da digitalização e dos drones tanto na aquisição de alvos quanto na realização de ataques–, e o balanço entre artilharia rebocada, autopropulsada, lançadores de foguetes e mísseis de longo alcance – incluindo a disponibilidade de munição, peças de reposição e combustível, além do treinamento dos efetivos. Será prudente reavaliar a oportunidade de a MB ser uma “esquadra balanceada”, e se a demanda de navios de transporte e de combate de superfície deve ceder lugar a uma perspectiva de negação do uso do mar ou, menos ambiciosamente ainda, de “negação de acesso e de área”, conhecida como “A2AD”. Uma redução da expectativa de atividade transoceânica, por sua vez, também implicaria a avaliação das necessidades de transporte e de combate da FAB: uma expectativa de maior atuação transoceânica exigiria quantidades significativas de aeronaves de transporte de maior capacidade do que, por exemplo, os KC-390, e de maior quantidade de aeronaves para dar-lhes proteção – talvez maior que o total dos Gripen previstos; já uma redução dessa expectativa tenderia a produzir um equilíbrio diferente (e quantidades diferentes).

Essas discussões não são triviais, e não podem ser feitas por cada força individualmente, e nem negociadas exclusivamente entre elas. O envolvimento ativo do Ministério da Defesa e das duas casas do Congresso Nacional é uma necessidade crucial. Cabe reiterar que, para fazê-lo, essas duas instituições se beneficiarão muito se aumentarem suas assessorias especializadas no assunto. No caso do MD, a solução é, claramente, a criação do quadro permanente. No caso do Congresso Nacional, a solução é mais simples, bastando aumentar, nos concursos, as vagas para esse tipo de competência e, mais imediatamente, qualificar atuais membros das assessorias nas matérias pertinentes.

Tratou-se aqui apenas de apontar alguns caminhos possíveis. Trata-se de um início de discussão. É bastante plausível que haja sugestões muito melhores que as aventadas aqui, ou aspectos adicionais da questão que não foram devidamente identificados ou avaliados. Ainda assim, os recentes acontecimentos internacionais mostram que essa discussão não tem nada de abstrata ou de secundária.

Eugenio Diniz é Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia; professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas; membro do International Institute for Strategic Studies (IISS, Londres).

Comentários são bem-vindos. Por gentileza, envie-os para [email protected].

[1]       Todos os números sobre equipamentos são retirados do Military Balance 2022, exceto quando explicitamente informada outra fonte. Os equipamentos escolhidos para comparação refletem o que pode ser considerado o mínimo de capacidade combatente em termos do estado da arte combatente consolidado contemporaneamente. Há intensas e aceleradas mudanças em curso nesse estado da arte, com destaque para o papel dos drones, dos armamentos hipersônicos e de energia dirigida, e da digitalização, obtenção, transmissão e automação do processamento de dados; mas essas mudanças reconfiguram o balanço entre aqueles equipamentos, e entre aqueles e as novas capacidades, mas não os eliminam.

[2]       Os números referentes à Marinha do Brasil (MB) não incluem o Corpo de Fuzileiros Navais nem a Aviação Naval.

[3]       Categoria equivalendo à soma de navios-aeródromos, fragatas, corvetas e destróieres.

[4]       Com a África do Sul, o Brasil tem de semelhante o fato de ambos serem, em termos de parâmetros tradicionais (tais como capacidade bélica e riqueza), os principais Estados na sua região; de enfrentarem pouco ou nenhum desafio militar direto da parte de seus vizinhos, ou mesmo de atores externos às respectivas regiões; de não disporem de capacidade bélica nuclear (embora a África do Sul já a tenha tido no passado); de serem frequentes participantes de Operações de Paz; de contarem com um litoral razoavelmente extenso; e terem uma indústria bélica com alguma capacidade em determinados nichos, conquanto diferentes. Porém, o Brasil possui economia maior que a África do Sul, e um território significativamente mais extenso.

[5]       Ao contrário do Brasil, Israel é territorialmente minúsculo; tem pouca presença marítima; tem capacidade bélica nuclear; conta com uma indústria de defesa que atua em diversos setores de ponta; seu entorno é um dos mais conflitivos do mundo, e o país não só está envolvido em uma situação de intermitente confrontação na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, como também esteve envolvido em 7 operações de maior porte nos últimos 70 anos, ou uma média de uma por década (1948, 1956, 1967, 1973, 1982, 2006, 2012); além de não ter tradição de participação em Operações de Paz.

[6]       Main Battle Tanks (MBTs), Light Tanks, Armoured Reconnaissance e Wheeled Assault Guns.

[7]       Armoured Personnel Carriers (APCs) e Infantry Fighting Vehicles (IFVs), incluindo também os M577, que são variantes dos M113 para postos de comando móveis blindados.

[8]       Ainda não haviam chegado os Gripen.

[9]       Há uma ligeira divergência entre esses números e os mencionados por Cepik e Velasco e Cruz (2022), mas é insignificante.

[10]     V. o Decreto nº 11.002, de 17 de março de 2022.

[11]     A título de ilustração, enquanto a variação do IPCA entre dezembro de 2008 e dezembro de 2021 foi de 112,15%, de acordo com a calculadora do IBGE , a variação nos gastos com pessoal e encargos sociais do Orçamento Fiscal no Ministério da Defesa foi de 647,78%, ao passo que a variação nos gastos do Orçamento de Seguridade Social do Ministério da Defesa foi de 59,75%. Com isso, a relação entre as despesas com inativos e pensões e as despesas com pessoal e encargos sociais da ativa caiu de 1,74, em 2008, para 0,45, em 2022. Essa relação voltará a crescer em breve (uma parte expressiva dessa queda se deve à combinação entre o fim da concessão de pensões vitalícias às filhas de militares que entraram nas FFAA depois de 2001 e o falecimento de várias dessas beneficiárias no período), a não ser que o pessoal da ativa aumente muito e bruscamente, e continue aumentando significativamente.[:]