Eugenio Diniz
26/2/2021
(Obs.: o texto foi editado para ser lido mais facilmente)
No dia 23 de fevereiro de 2021, anunciou-se um acordo preliminar entre o Facebook e o governo australiano a respeito do pagamento a empresas jornalísticas pela reprodução de seus conteúdos na rede social — após o Facebook ter bloqueado, por aproximadamente uma semana, a divulgação de conteúdo jornalístico na Austrália. Na véspera, a Microsoft revelara seu engajamento junto a empresas jornalísticas europeias no sentido de buscar uma maneira de fazer com que as plataformas Big Tech paguem pelo uso de conteúdo de grandes empresas jornalísticas (referidas como “gatekeepers with dominant market power”). E, poucos dias antes, em 17 de junho, a Alphabet, controladora do Google, anunciou um acordo com a News Corp, de Rupert Murdoch, para pagar-lhe pelo uso de seu conteúdo jornalístico — foi na Austrália que o conglomerado de mídia de Murdoch começou a formar-se.
Os anúncios vêm na esteira da discussão de uma proposta de legislação australiana, segundo a qual Facebook e Google teriam que pagar pelo conteúdo jornalístico veiculado ou acessado a partir de cliques. A proposta inclui ainda o estabelecimento de um procedimento de arbitragem, a ser acionado em caso de propostas de valor muito baixo feitas pelas plataformas, cujo objetivo, em princípio, seria diminuir a assimetria de poder de barganha entre as empresas jornalísticas e as plataformas. A ideia da legislação seria, à primeira vista, criar um mecanismo de custear a atividade jornalística, frequentemente considerada como uma condição essencial do funcionamento das democracias. Além da Austrália e da União Europeia, também o Canadá está considerando a questão.
O modelo de negócios tradicional do jornalismo
O modelo de negócios do jornalismo que vigeu durante boa parte do Século XX, pelo menos, envolvia alguma combinação de venda (avulsa e por assinatura) e publicidade (anúncios dirigidos ao público leitor em geral e os classificados)[1]. Como regra, a principal receita tendia a provir da publicidade. Quem já tem alguma idade, como eu, talvez se lembre de como algumas revistas semanais — no Brasil, o principal exemplo era a Veja — eram grossas, com grande quantidade de páginas, sendo que uma enorme parcela delas, e às vezes a maioria, era de anúncios publicitários. Talvez se lembre também de como, na primeira metade dos anos 1990, a Folha de São Paulo tentou disputar mercado com o O Estado de São Paulo oferecendo anúncios classificados gratuitos como uma forma de, ao mesmo tempo, subtrair receita do seu principal concorrente (cujos cadernos de classificados, aos domingos, eram enormes, a ponto de serem, para muitas pessoas, uma ou a mais importante razão para comprá-lo) e aumentar as suas próprias vendas no domingo e, idealmente, até mesmo aumentar a quantidade de seus assinantes — já que as vendas tinham uma importância maior para a receita da Folha de São Paulo. Em alguns casos, havia jornais cuja receita provinha inteiramente de anúncios, circulando gratuitamente, principalmente aos domingos. Valia o mesmo para jornais do exterior, como o The New York Times, o Washington Post ou o Le Monde.
Esse modelo viabilizou a grande mídia jornalística, e particularmente a diversidade de fontes na cobertura internacional. Os principais veículos podiam custear amplos escritórios em vários países no exterior — muitas vezes em várias cidades de um mesmo país estrangeiro —, com correspondentes que também corriam atrás de muitas notícias importantes, independentemente das fontes locais; as maiores costumavam contratar pelo menos um ou uma jornalista em países de porte médio, para não terem que depender exclusivamente de veículos de imprensa locais. Eu me lembro de não comprar a The Economist toda semana, pelo simples fato de que uma semana era insuficiente para eu ler as notícias que me interessavam — nem passava pela minha cabeça ler a revista inteira; alternando semanas, ao menos fazia-se-me possível acompanhar uma diversidade maior de assuntos e países. Com algumas variações, o jornalismo feito por emissoras de rádio e televisão seguiam basicamente o mesmo modelo de negócios: o jornalismo feito por emissoras de rádio e de TV aberta dependiam inteiramente dos anúncios, e o feito pelos canais de TV por assinatura dependiam de uma combinação de assinaturas e publicidade.
As dificuldades trazidas pela Internet e pelas Big Techs
A Internet e as redes sociais inviabilizaram completamente esse modelo de negócios.
Primeiro, os classificados minguaram; afinal, tornou-se possível atingir uma quantidade muito maior de pessoas, a custo praticamente zero. As corretoras imobiliárias, por exemplo, que eram parte importante dos anunciantes dos classificados, simplesmente passaram a anunciar diretamente na rede, em alguns casos em plataformas colaborativas, às vezes em páginas próprias, e frequentemente das duas maneiras. Os classificados eram também importantes como uma maneira de fazer com que organizações em busca de pessoas para trabalhar encontrassem pessoas em busca de emprego; também isso foi esvaziado — hoje há, inclusive, uma rede social (Linkedin) dedicada a atividades profissionais, com ampla oferta de vagas de todo tipo, e onde pessoas anunciam seus currículos e habilidades. Mas, mesmo sem isso, as pessoas já se podiam valer de sua ampla rede de contatos para divulgar seus interesses a custo praticamente zero.
Em seguida, os anunciantes corporativos também sumiram: a eficiência da segmentação de mercados através da ciência de dados aplicando inteligência artificial à enormidade de informações disponibilizadas, voluntária e gratuitamente, pelas pessoas por meio das suas buscas no Google ou na Amazon) e de seus comentários, respostas, cliques e likes no Facebook, Twitter, You Tube, Linkedin, WeChat, TikTok, Tinder e, novamente, Amazon fizeram com que estas plataformas fossem progressivamente abocanhando a parte do leão da publicidade — isso em conjunto com o fato que seu custo é baixíssimo, pois nenhuma dessas plataformas produz conteúdo nenhum, e são inteiramente virtuais, sem os custos administrativos, operacionais, logísticos e financeiros ligados à produção física de bens e serviços, e com investimentos de capital per capita baixíssimos, e decrescentes na medida em que o número de usuários aumenta. As empresas jornalísticas, com seus anúncios massificados (o que implica uma grande medida de desperdício e ineficiência) e, ainda por cima, caros não tinham e não têm como competir. Para dar uma ideia: conforme reportado pelo Valor, em 2020, do mercado publicitário dos EUA (o maior do mundo, estimado em 136 bilhões de dólares), o Google abocanhou 29,7%, o Facebook ficou com 23,5%, e a Amazon ficou com 10,2%. Três empresas ficaram com praticamente 2/3 do mercado publicitário, no país do The New York Times, Washington Post, Los Angeles Times, New York Post, Chicago Tribune, CNN, CBS, NBC, Fox News, HBO…
A ida do jornalismo para a Internet não resolveu o problema. Apesar de reduzir vários dos custos, esse movimento fez com que também o número de leitores diminuísse — cada exemplar de revistas e jornais costumava ser lido por muitas pessoas, o que não ocorria na rede. Além disso, primeiro, blogueiras e blogueiros (e depois youtubers, podcasters e influencers) reproduziam trechos inteiros de notícias ao comentá-las; com isso, muitas pessoas passaram a considerar dispensável pagar pelo acesso ao conteúdo jornalístico, e até mesmo acessar diretamente as páginas das revistas e dos jornais, fiando-se em que seus blogues favoritos já fariam a seleção das notícias mais relevantes, e até das informações mais relevantes de cada notícia; em consequência, essas mídias é que se tornaram o destino das verbas publicitárias, e não as empresas jornalísticas. O advento das redes sociais, e particularmente do Facebook e do Twitter e outras plataformas semelhantes (MeWe, Parler) levou esse processo ao paroxismo, pois, nesses casos, nem mesmo as pessoas que comentam recebem coisa alguma: toda a verba de publicidade fica com as plataformas.
A diminuição do público leitor faz com que o custo fixo per capita das empresas jornalísticas dispara, o que, novamente, afugenta o público pagante; a alternativa, naturalmente, é reduzir os custos — ou seja, fechar escritórios, demitir jornalistas, repórteres, correspondentes e aumentar o espaço ocupado por comentaristas, mas diminuindo o número de comentaristas; com isso, obviamente, diminui o tempo para que comentaristas possam se aprofundar nos assuntos, ao mesmo tempo em que aumenta a quantidade de assuntos que exigiriam aprofundamento. A espiral é óbvia: menos anúncios e menos leitoras e leitores, menos recursos para jornalismo independente e de qualidade; jornalismo pior, menor público; menor público, menos anúncios; e daí por diante… Embora ainda vejamos muitos anúncios de carros chineses nas páginas do Valor, a Veja minguou — não só as páginas com anúncios, mas também as que eram ocupadas com matérias. A cobertura internacional do O Estado de São Paulo, que era um dos grandes atrativos do jornal (principalmente aos domingos) também reduziu-se significativamente. E, durante um tempo, eu até passei a assinar a The Economist (porque ela diminuiu ao ponto de ser possível lê-la ao longo de uma semana, só que inteira), mas depois parei, porque não estava valendo a pena. Que contraste com os anos 1990!
O debate público e o ambiente propício para o boato, a propaganda e a desinformação
O colapso do modelo tradicional tem inúmeras consequências em termos de qualidade jornalística, mas também de facilitação da disseminação de informação de baixa qualidade, boatos e desinformação, pois os veículos por onde tudo isso circula são os mesmos (Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube) — o que, paradoxalmente, contribui para aumentar a credibilidade da má informação e diminuir a da boa informação. Ao mesmo tempo, a dinâmica da segmentação do público opera da mesma maneira para os veículos de imprensa: quanto mais compartilhada, melhor tende a ser sua posição nos motores de busca (tipicamente no Google) e maiores as chances de que alguém acabe visitando a página da revista ou do jornal. Com isso, também o jornalismo torna-se dependente da dinâmica dos cliques e dos likes — afinal, a imensa maioria das pessoas, por diversas razões (algumas delas intensificadas nas redes que, por isso, prefiro chamar de antissociais), compartilha a informação com que concorda, ou a que acha que a maioria de seus contatos mais próximos vai aprovar, e não a que a obriga a reavaliar suas posições; ao fazê-lo, divulga-a principalmente para pessoas que tendem a compartilhar suas posições, tanto por viés de seleção na identificação de pessoas com as quais se relaciona quanto em função dos próprios algoritmos das redes (anti-) sociais. Isso significa que, para os veículos de notícias, sua viabilidade depende de identificar sua claque e agradá-la; jogar para a torcida, como se diz.
Ao considerarmos, por fim, a pressão pela rapidez na divulgação da notícia, decorrente da possibilidade de acesso em tempo real, temos também a diminuição da checagem, da confirmação, da corroboração da notícia, o que, inevitavelmente, contribui para a perda de qualidade. Com isso, temos a dificuldade de discriminar entre informações de boa e de má qualidade, combinada com um fechamento ao diálogo que, não obstante, se nos apresenta como se fosse a potencialização do diálogo. É evidente o caráter explosivo dessa combinação: polarização extrema construída e continuamente reforçada e intensificada a partir de informação duvidosa, propaganda e até mesmo desinformação. Essa dinâmica está claramente em tensão com a busca de informar com os máximos possíveis de padrões e critérios de seriedade e independência — por exemplo, evitando o uso de “dois pesos, duas medidas”, seja na seleção de notícias, seja na maneira de reportá-las —, ainda que com perspectivas diferentes. Note-se que nada disso decorre de qualquer má vontade de jornalistas e editores: reiterando, trata-se de um processo instaurado pelo colapso do modelo de negócios que viabilizou as grandes empresas jornalísticas com as quais muitos de nós, mais antigos, nos acostumamos. Na verdade, os que conhecemos e convivemos com jornalistas e editores sérios e comprometidos podemos constatar o quanto isso os frustra e angustia.
Sim, mesmo antes já havia diferenças de perspectivas entre os veículos de imprensa, facilmente constatável quando, não muito tempo atrás, pudemos ler, online, o Le Monde e o Le Figaro, o Telegraph e o Guardian, o Jerusalem Post e o Haaretz; por isso, aliás, o hábito que muitos de nós tínhamos de ler regularmente dois jornais diferentes. Mas hoje? A tendência predominante é, simplesmente, ao longo do dia, clicarmos de vez em quando na página do único jornal que assinamos, quando assinamos algum; a informação mínima vai chegar até nós de qualquer jeito, e, em boa parte dos casos, a matéria mais detalhada não faz tanta diferença assim; em alguns casos, a comentarista de um jornal impresso é a mesma do telejornal noturno de uma outra empresa jornalística. Sério: não vale a pena pagar por esse comentário.
Mas o ponto a destacar aqui é o seguinte: é essa situação que favorece a propagação tão veloz da informação de má qualidade, do boato e da desinformação. As fake news são sintomas, resultados, e não fatores independentes em si mesmo. Tentar combatê-las diretamente, cerceando conteúdo — como querem fazer (e outros querem que façam) o Twitter, o Facebook, a Amazon, o STF e outros — é atacar o termômetro. Não é apenas inócuo: é contraproducente, pois isso pressupõe conceder a alguém a capacidade de arbitrar o que é verdadeiro e o que não é; é uma empreitada orwelliana. A questão é como restabelecer algum mecanismo que induza à constante competição pela reputação de provedora, séria e capaz, de conteúdo de qualidade — o que envolve a existência de uma quantidade de organizações cuja viabilidade dependa de assegurar-se da qualidade da própria informação, questionando-a, e avaliando e eventualmente confrontando a informação provida por outrem, com a mesma seriedade.
A ideia das legislações e acordos em gestação, ao prover uma fonte adicional e potencialmente relevante para as empresas jornalísticas, seria contribuir para a viabilidade econômica da imprensa, o que, presumivelmente, contribuiria para um aumento da presença da informação de qualidade, o que seria bom para a democracia. À primeira vista, isso poderia aumentar a capacidade de produção de informação de boa qualidade.
Mas isso seria suficiente para a promoção do debate e da competição pela reputação de provedor sério de conteúdo, tornando mais nítida a distinção entre fontes de boa qualidade e fontes de má qualidade, intensificando, apesar das saudáveis diferenças de perspectivas, a busca por coberturas jornalísticas criteriosas e independentes? Quanto a isso, temo que a resposta seja “não”. Na verdade, creio que o efeito será o oposto do desejado, pois a referida legislação acentuará a dependência da saúde financeira das empresas jornalísticas para com as dinâmicas dos cliques e dos likes. Ainda mais do que atualmente, os veículos terão que jogar para a torcida, com o detalhe de que, cada vez menos, essas torcidas parecem dispostas a considerar as “verdades inconvenientes”, ou as informações que contrariem suas posições preconcebidas, reforçadas, nas redes sociais, pela tendência ao groupthink. Pelo menos tomado isoladamente, o reforço ao caixa das empresas a ser obtido pelas propostas de legislação em questão não atenderão ao propósito de reforçar o jornalismo de qualidade para o bem da democracia.
Como afirmado antes, o ponto central é a agressiva segmentação dos públicos dos motores de busca e das redes sociais, cujos algoritmos direcionam o material (inclusive quais postagens de quais contatos nas redes antissociais) a ser mostrado a cada usuária ou usuário, identificado a partir de suas manifestações, sejam as óbvias e voluntárias (como as buscas, os cliques e likes), mas também pela análise de seu comportamento online: tempo (e horários) em que permanece em conexão, tempo de visualização de cada postagem, quantas e quais páginas que acessa a partir das buscas e do que vê nas redes antissociais, que tipo de material posta e compartilha, inclusive o conteúdo das postagens, quais os anúncios (e suas características) que mais atraem e quais mais afugentam, qual o perfil predominante de seus contatos etc. O modelo de negócios das Big Techs é baseado nessa segmentação agressiva e nessa agregação de material.
Desse ponto de vista, o problema passa a ser como lidar com esse último aspecto: enfrentar os algoritmos e os modelos de negócios das Big Techs. Em conjunto com esse enfrentamento, talvez as iniciativas legislativas hoje em discussão possam trazer algum progresso. Como essa discussão também envolve vários aspectos e nuances, ficará para outra postagem.
Eugenio Diniz é Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia; professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas; membro do International Institute for Strategic Studies (IISS, Londres).
Comentários são bem-vindos. Por gentileza, envie-os para [email protected].
[1] Há um bom resumo do modelo tradicional de negócios do jornalismo no capítulo 3 do Report of the independent inquiry into the media and media regulation. Para os desenvolvimentos mais recentes, entretanto, esse relatório (de 2012) está defasado. Muita coisa já mudou desde então.