EUA, China e a OMPI: Uma disputa para prestar atenção

Eugenio Diniz

20 de maio de 2020

Quem precisa monitorar o ambiente político para avaliar a oportunidade de decisões cujo horizonte de tempo é maior não pode ficar presa às manchetes do dia. Pelo contrário, é necessário exercitar a atenção para detectar eventos e processos a que nem sempre se dá muita importância, mas que podem ter impacto duradouro (ou então evitar mudanças que poderiam ter longo alcance), e/ou sinalizar a ocorrência de mudanças relevantes. Por exemplo, se a sua organização tem que decidir se vai ou não investir no desenvolvimento de novos produtos, que exigem pesquisas cujo custo é alto, cujo resultado é incerto e cujo prazo de maturação é longo, é bom que ela tenha em mente as tendências globais no que concerne à propriedade intelectual; caso contrário, pode acabar ocorrendo que não seja possível recuperar o investimento, mesmo que as atividades de P&D tenham sido bem sucedidas.

Um acontecimento desse tipo ocorreu na semana passada, no meio da turbulência causada pelo COVID-19 (“o novo coronavírus”), e logo antes da disputa Rússia-Arábia Saudita que abalou os mercados financeiros mundo afora. Trata-se da indicação, pela Comissão de Coordenação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), do Sr. Daren Tang, de Cingapura, para o cargo de Diretor-Geral da Organização, para os próximos seis anos, a partir de setembro de 2020. A Comissão de Coordenação é composta por 83 dentre os atuais 193 Estados-membros da OMPI. O Sr. Tang, que foi apoiado pelos EUA e também pelo Brasil, obteve, ao final do processo de indicação na Comissão, 55 votos — quase o dobro dos 28 votos obtidos pela candidata chinesa, Srta. Wang Binying, que á atualmente a Vice-Diretora para o Setor de Marcas e Desenho da OMPI.

Tanto a indicação quanto a expressiva votação obtida pelo Sr. Tang são particularmente significativos, uma vez que a China empenhou-se intensamente na eleição de sua candidata. Há, inclusive, relatos de ofertas de incentivos econômicos por parte da China junto a Estados-membros da Comissão de Coordenação (inclusive ao Brasil), no intuito de angariar votos. Assim, imaginava-se que uma eventual derrota da Srta. Binying, se viesse a ocorrer, seria por uma diferença muito pequena de votos; mas não foi isso o que ocorreu.

Vamos ver agora por que isso é tão importante.

Desde 2010, a China tem intensificado sua atividade em organismos internacionais, e, mais recentemente, o caráter estratégico dessa atividade tem ficado mais marcado, com a busca ativa por postos-chaves na liderança de organizações, principalmente OIs que podem trazer, direta ou indiretamente, benefícios à sua economia. Atualmente, por exemplo, dentre as 15 agências especializadas das Nações Unidas (ONU), a China ocupa o principal cargo em 4 delas: A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO); a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI); a União Internacional das Telecomunicações (UIT); e a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO); nenhum Estado tem o principal cargo em mais que 1 das outras 11 agências especializadas da ONU (os EUA, por exemplo, controlam o Banco Mundial). Alguns comentaristas sustentam que, contrariamente ao que normalmente se espera de ocupantes de posições de liderança em OIs, a China pressionaria fortemente os seus representantes para que atuassem diretamente em prol dos interesses chineses, inclusive punindo de alguma forma os que agissem diferentemente. Houve expressa preocupação, manifestada até mesmo numa correspondência ao Presidente Trump, assinada pelos líderes do Partido Republicano e Democrata no Senado, alertando para a necessidade de conter a influência chinesa em organizações internacionais.

Houve preocupação particularmente intensa com a possibilidade de que a China viesse a ocupar o cargo de Diretor-Geral da OMPI (ou então para o de Vice-Diretor Geral para o Setor de Patentes e Tecnologia). A OMPI é o órgão central de gerenciamento de diversos acordos relacionados à propriedade intelectual, com destaque para o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT). Graças à atividade da OMPI, é possível obter uma patente na OMPI, sem precisar repetir o processo nos Estados membros do PCT. Ao mesmo tempo, é mantido rigoroso sigilo sobre as informações das patentes por 18 meses, de modo a garantir ao proprietário condições para planejar a sua utilização comercial. Havia a preocupação de que, caso a representante chinesa (tida como pessoalmente bastante qualificada) obtivesse a posição, a China exercesse pressão para obter acesso, ou então condições de acesso, à informação sobre segredos comerciais. Essa preocupação é reforçada pela percepção, pelo menos em alguns círculos, de que a China faria uso de métodos bastante agressivos para acesso a tecnologia desenvolvida por outrem — aliás, um item central na disputa comercial entre a China e os EUA. Embora não haja consenso quanto a essa possibilidade, a preocupação parece ter-se estabelecido.

Como, recentemente, na escolha para o cargo de Diretor-Geral da FAO, na qual se empenhou fortemente, a China obtivera um triunfo espetacular[1], atribuído por alguns a alguma combinação de descaso, pela Administração Trump, com relação a organizações internacionais e pura inépcia nas articulações por parte da diplomacia dos EUA, a disputa na OMPI acabou ganhando grande relevo. Ao que consta, os EUA inclusive estabeleceram um “enviado especial para integridade multilateral”, o experiente diplomata Mark Lambert, cuja função seria, ao que parece, confrontar a crescente influência chinesa em organizações internacionais. Sua primeira tarefa seria exatamente impedir que a Srta. Binying fosse indicada para Diretora-Geral da OMPI.

O resultado geral do processo de indicação (inclusive a grande diferença de votos), portanto, aponta para as seguintes tendências:

a continuidade do forte empenho, pela China, na obtenção de posições estratégicas em organismos internacionais;
uma nova tomada de consciência, pela administração dos EUA, da importância de uma postura ativa em OIs (ou, pelo menos, algumas delas);
a continuação do grau de proteção vigente para o sigilo das informações depositadas junto à OMPI, caso a indicação do Sr. Tang seja corroborada pela Assembleia Geral da OMPI, pela Assembleia da União de Paris e pela Assembleia da União de Berna, em votações previstas para 7 e 8 de maio de 2020 — independentemente de considerar-se ou não que a possibilidade de que essa proteção estaria em risco no caso de uma vitória da China;
um forte indício de que, em disputas nas quais haja efetivo empenho de ambos, a capacidade de arregimentação política dos EUA em organismos multilaterais continua a ser maior que a da China, e talvez significativamente maior. Esse ponto é fortalecido pelo entendimento de que o resultado obtido na Comissão de Coordenação da OMPI não teria sido possível sem os votos de vários países africanos, junto aos quais seria de se esperar que a China tivesse fortíssima influência.
Esse último ponto, se corroborado, pode ter impacto muito além das consequências econômicas relacionadas à proteção da propriedade intelectual; significaria que, ao contrário do que seu alto grau de crescimento econômico e pujança tecnológica (pelo menos em alguns setores), a China não seria — pelo menos ainda — um ator de primeira grandeza, um concorrente à altura dos EUA. Caso essa percepção — verdadeira ou falsa — acabe por prevalecer, algumas possibilidades de realinhamento político atualmente em curso talvez venham a ser revistas, e algumas iniciativas mais ambiciosas da China comecem a esbarrar em maiores resistências.

Exatamente por causa dessa possibilidade e de suas consequências significativas, deve-se estar atento para o que ocorrerá na OMPI de agora até o começo de maio. Normalmente, as votações nas Assembleias, mencionadas acima, que aprovam a indicação da Comissão de Coordenação, são uma mera formalidade. Entretanto, dependendo de como avaliar a importância do que está em jogo, a China pode tentar barrar a aprovação do Sr. Tang como Diretor-Geral da OMPI, pois, nesse caso, seria necessário que a Comissão de Coordenação indicasse um outro nome, que seria submetido às Assembleias para aprovação; se este também não for aprovado, o processo repete-se, até que algum nome seja aprovado.

Trata-se, claro, de um dilema: caso ela jogue pesado e seja bem-sucedida — o que será muito difícil, pois os custos políticos passam a ser muito altas, e a tendência de aprovação por inércia é forte —, ela terá que, ainda assim, conseguir que a Comissão indique a candidatura da China e que esta também seja aprovada nas Assembleias pertinentes, o que exigirá enorme dispêndio de recursos políticos; por outro lado, caso ela não seja sucedida em apenas uma dessas etapas tendo despendido enorme esforço político, a percepção de fraqueza política será realçada, e suas consequências poderão ser ainda mais significativas.

Portanto, minha sugestão é: fiquem de olho na OMPI em maio. Dependendo de como as coisas caminharem, sinais importantes podem ser dados.

Eugenio Diniz é Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia; professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas; foi Presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI (2015-2017; 2017-2019).

Comentários são bem vindos. Por gentileza, envie-os para [email protected].

[1] A FAO tem 194 membros, dos quais 191 votaram; o candidato chinês, Sr. Qu Dongyu, teve 108 votos, e o candidato apoiados pelos EUA teve 12.

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