A OMS e a propagação internacional de doenças

Eugenio Diniz

27 de abril de 2020

A Organização Mundial da Saúde, conhecida pela sigla OMS, é uma das 15 agências especializadas da Organização das Nações Unidas — ONU, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (normalmente contado como uma agência, embora na verdade designe um grupo de 5 agências). O curioso é que, apesar das epidemias e do retorno das infecções sexualmente transmissíveis que se seguiram à II Guerra Mundial e do fato de que a Liga das Nações (organização antecessora da ONU, criada após a I Guerra Mundial) dispor de uma agência para assuntos de saúde (a Organização de Saúde da Liga das Nações, criada em 1920), o estabelecimento de uma organização internacional para assuntos de saúde não estava na agenda da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, ou Conferência de San Francisco, que resultou na Carta da ONU . Por pressão das delegações brasileira e chinesa, foi realizada, entre 19 de junho e 22 de julho de 1946, realizou-se em Nova Iorque a Conferência Internacional de Saúde.

A Conferência tomou várias decisões importantes, incluindo a criação da OMS e sua constituição, e o fato de que a nova organização incorporaria outras organizações internacionais voltadas para a saúde previamente existentes, como a OSLN, a Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas, o Office d’Hygiène Publique, e organizações regionais, com destaque para a Oficina Sanitária Pan-Americana (hoje parte da Organização Panamericana de Saúde [OPAS]) — cuja absorção pela OMS foi muito complicada, trazendo reflexos até hoje, como veremos em um outro momento. Porém, para entrar em vigor, o tratado de criação da OMS teria que ser ratificado sem ressalvas por 26 estados (metade mais um do total de 51 participantes da Conferência). Porém, as tensões políticas que caracterizariam a Guerra Fria já começavam a manifestar-se, e a 26ª ratificação sem ressalvas não vinha. Após um surto de cólera no Egito, em 1947, entretanto, houve um rápido aumento no número de ratificações, e a Constituição da OMS entrou em vigor em 7 de abril de 1948 — data em que, desde então, é comemorado o Dia Mundial da Saúde.

A Constituição da OMS estabelece que “um dos direitos fundamentais de qualquer ser humano” é “a obtenção, por todos os povos, do mais alto padrão possível de saúde” — saúde, por sua vez, entendida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”. Ousada, não? Entretanto, a primeira tarefa a que a OMS se dedicou foi mais modesta: revisar e consolidar as convenções em matéria de saúde previamente existentes. Em 1951, a Assembleia Mundial de Saúde (o órgão decisório máximo da OMS) aprovou o Regulamento Sanitário Internacional (que, mais tarde, teria seu nome mudado para Regulamento Internacional de Saúde, mas o nome em português permaneceu igual), que substituiu 12 convenções anteriores. Os Estados-membros se comprometiam a adotar regulamentos relacionados a “exigências sanitárias e de quarentena e outros procedimentos voltados para evitar a propagação internacional de doenças” — prestem atenção no internacional aqui; esses regulamentos seriam obrigatórios para todos os Estados-membros, a não ser para aqueles que explicitamente declarassem sua opção de não segui-las dentro de um período determinado, determinado no próprio ato que estabelecesse as exigências.

O Regulamento estabeleceu 6 “doenças notificáveis” (varíola, cólera, febre amarela, febre tifoide, febre recorrente e peste bubônica); caso houvesse ocorrência, em seres humanos, daquela doença em seu território, os Estados-membros se obrigavam a informar o fato à OMS, que também teria que ser informada quando a área estivesse livre de infecção. Os Estados-membros também se comprometiam a implementar medidas de higiene em travessias de fronteira, portos e aeroportos para averiguar a presença de doenças notificáveis em cargas e pessoas. Por sua vez, o RIS autorizava aos Estados-membros requerer que viajantes apresentassem certificados de saúde e de vacinação antes de adentrarem seus respectivos territórios. Em contrapartida, declarava-se que o Regulamento eram as medidas máximas permissíveis no âmbito do Direito Internacional.
O Regulamento Sanitário Internacional (conhecido como RIS), que foi modificado ao longo do tempo [a versão mais recente é o RIS (2005)], é o fundamento da atuação da OMS diante da ocorrência, ou da possibilidade de ocorrência, de epidemias e pandemias, como a que estamos vivendo hoje. Algumas mudanças foram de menor porte, fundamentalmente de ajuste — por exemplo, em 1969, tifo e febre recorrente foram retiradas da lista de doenças notificáveis; e, em 1981, a varíola também foi retirada da lista, pois foi considerada erradicada.

Porém, ao longo das décadas de 1980 e 1990, críticas mais substantivas ao RIS foram se avolumando, como bem destacado e examinado, por exemplo, por Jeremy Youde . Seu foco em doenças específicas foi por muitos considerado muito estreito, muito restrito; particularmente os novos Estados-membros, formados a partir do processo de descolonização que ocorreu principalmente nas décadas de 1960 e 1970, ressaltaram o contraste entre aquele foco restrito e o entendimento sobre a promoção da saúde estabelecido na Constituição da OMS. Assim, começaram a pressionar por uma abordagem sobre a saúde que não a separasse das condições econômicas e sociais mais gerais. Já os países desenvolvidos, por sua vez, passaram a ter cada vez menos interesse em doenças infecciosas, que de fato se haviam tornado menos frequentes entre eles — e, nessa altura, o RIS se reduzia a três doenças (cólera, febre amarela e peste bubônica), que já nem eram mais as mais importantes doenças infecciosas no mundo, diante de outras que já haviam surgido; como os países desenvolvidos e ricos também não estavam muito interessados no enfoque proposto pelos países menos desenvolvidos e mais pobres — que, no contexto da Guerra Fria, chegou a ser identificado por alguns afinidade com a pauta política de países socialistas —, a OMS foi perdendo também em termos de recursos e pessoal. Não por acaso, aliás, esse período que vai de meados dos anos 1980 e meados dos anos 1990 é caracterizado por uma diminuição da influência e da centralidade da OMS nas questões de saúde, em detrimento de outras agências — particularmente o Banco Mundial, cujas atividades voltadas ao desenvolvimento efetivamente colaboravam na ampliação da capacidade instalada de saúde, diretamente, e em políticas de desenvolvimento mais geral, que tinham potencialmente impacto indireto na saúde (o que era muito valioso para os países menos desenvolvidos, ou mais pobres), com base em uma série de critérios técnicos (o que era valorizado pelos países desenvolvidos ou mais ricos).
E, por fim, um problema crucial é que as normas estavam sendo simplesmente desrespeitadas. Em alguns casos, alguns governos começaram a exigir atestados de saúde relacionados a doenças que não faziam parte da lista de doenças notificáveis — particularmente no caso de HIV/AIDS. Em outros casos, Estados-membros simplesmente deixavam de informar surtos de doenças oportunamente, e em alguns casos deliberadamente informavam um número bem menor de ocorrências de uma determinada doença.
Várias causas contribuem para essa subnotificação, mas cabe destacar aqui duas mais relevantes. Uma é que, em vários países mais pobres, os governos simplesmente não dispunham da infraestrutura de saúde que lhes permitisse produzir e divulgar informações adequadas e em tempo hábil; às vezes, dispender recursos de saúde na vigilância e no controle podia significar reduzir os recursos disponíveis para os cuidados básicos da população. Mas uma outra cause é de natureza política. Apesar do risco de embaraço ou de perda de reputação decorrente de eventuais críticas pela OMS, o fato é que o anúncio da ocorrência de surtos de algumas doenças poderia trazer impacto significativo em termos econômicos e também de prestígio internacional — e não havia nada que a OMS pudesse fazer quanto a isso. Nas lúcidas palavras de Youde: “Vigilância adequada poderia inadvertidamente implicar punições e ostracismo”. Ou seja, havia fortes incentivos para que os países não prestassem adequadamente as informações devidas à OMS. E isso levava então ao quarto problema identificado no RIS: o sistema de vigilância da OMS era completamente dependente de fontes governamentais que, por sua vez, tinham fortes incentivos para não colaborar adequadamente — e nem lhes era exigido que o fizessem de maneira proativa; e, em outros casos, nem mesmo tinham a capacidade de fazê-lo.
Estava óbvio que o RIS (1969) se tornara irrelevante, e tinha que ser modificado. E, de fato, em 1995, a Assembleia Mundial da Saúde determina a revisão do RIS (1969), reconhecendo assim que ele fracassara nos seus objetivos fundamentais. Entretanto, apesar de alguns esforços e iniciativas, a revisão do RIS (1969) não estava no topo das prioridades da OMS — mais ocupada então com o acesso a medicamentos críticos, o que tinha implicações também em termos de propriedade intelectual, que era e é uma preocupação central para países ricos e desenvolvidos. Com isso, a finalização da revisão do RIS (1969) foi sucessivamente adiada… até 2003. 2003 foi o ano da SARS, que era claramente uma nova doença claramente ligada às viagens internacionais, com impacto econômico significativo decorrente de restrições ao comércio e a viagens. Alguns países não informaram adequadamente o alcance da SARS na sua jurisdição (a China foi bastante criticada à época). Embora a atuação da OMS tenha sido decisiva, e devidamente reconhecida na época, ficou claro que sua atuação se dera à margem das obrigações legais existentes, e talvez apesar das limitações destas. Com isso, a revisão do RIS (1969) ganhou forte impulso, e em 2005 a Assembleia Mundial da Saúde aprovou a revisão do RIS, que passou então a ser conhecido como RIS (2005).
Pelo novo Regulamento, os Estados-membros são obrigados a relatar a ocorrência, em seu território, de qualquer evento extraordinário que possa vir a ser um risco de saúde para outros Estados devido à propagação internacional de uma doença e que possa requerer uma ação coordenada internacional. Note-se que essa definição inclui tanto doenças infecciosas quanto incidentes químicos e radiológicos, por exemplo — e claramente não se restringe a 3 doenças específicas. Os Estados-membros têm 48 horas, a partir da detecção inicial, para avaliar a gravidade da ocorrência e informarem a OMS em até 24 horas após a confirmação. Outras mudanças importantes foram a obrigação de uma atitude proativa por parte dos Estados-membros quanto ao monitoramento das respectivas situações de saúde domésticas, inclusive estabelecendo um canal de contato formal e permanente para comunicação junto à OMS.

Além disso, e crucialmente, o RIS (2005) permite que outros atores que não apenas os governos dos Estados-membros informem a ocorrência daqueles eventos à OMS — o que retira dos governos o monopólio e enfraquece sua capacidade de ocultar ou esconder a ocorrência de tais incidentes. A partir daí, a OMS pode requerer e monitorar a atuação de um governo na averiguação do incidente relatado; e, para proteger cidadãos e instituições, a OMS não precisa revelar a fonte da informação. Essa última providência permite que a OMS aproveite e se beneficie da Rede Global de Ação e Resposta a Epidemias (conhecida pela sua sigla em inglês GOARN), criada em 1997, uma forma de colaboração técnica por parte de pessoas e instituições que acompanham o noticiário local, redes de saúde e outras fontes de modo a detectar o surgimento de surtos e epidemias o mais rapidamente possível.
Claro, um outro problema ainda permanece, apesar da revisão: persiste o fato de que muitos Estados-membros simplesmente não dispõem dos recursos necessários para cumprir as novas exigências de monitoramento.
De qualquer modo, o RIS (2005) constitui a base jurídica para atuação da OMS no caso de epidemias e pandemias, e que poderia, segundo alguns, servir de base a uma ação mais decisiva com relação à China, tanto por organizações multilaterais quanto, eventualmente, por Estados individualmente, caso se considere que a China tenha falhado em suas obrigações no caso da Covid-19.
Mas como funciona a OMS? Quão independente ou dependente ela é do jogo de forças da política internacional? Isso fica para a próxima apresentação. Até lá!


Para uma apresentação do processo de criação da OMS, pode-se ler Lee, Kelley. The World Health Organization (WHO). London, Routlege/Taylor&Francis, 2009. pp. 12-24.
Seguimos aqui a excelente exposição da atividade da OMS em doenças infecciosas globais feita por Youde, Jeremy. Global Health Governance. Cambridge (UK), Polity Press, 2012. pp. 117-130.
Youde, Global Health Governance, citado acima, p. 120.

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